Por que defendemos a abolição total da exploração dos animais?
Luciano Cunha
Este texto trata de explicar o porquê da luta pelo fim da exploração sofrida pelos animais não-humanos pelas mãos dos animais humanos, em todas as suas formas. Olhando de fora, os defensores dos animais são vistos como radicais (no sentido pejorativo): “Que raios estas pessoas estão defendendo que não podemos comer a carne de um animal que sofreu dor?”. Os que vão além desta postura, são vistos como mais extremistas ainda “O que? Agora não podemos comer a carne nem de um animal que foi morto sem dor?”. E os que defendem a abolição total do uso de animais não-humanos pelas mãos dos humanos (seja na alimentação, experimentos científicos ou não, entretenimento, caça, vestuário, criação comercial de animais de estimação, etc) são freqüentemente vistos como loucos. Tentarei aqui explicar a concepção de cada uma dessas vertentes de defesa dos animais não-humanos.
Apenas fazendo um parêntese, antes de iniciar, sobre o termo “radical”. Radical vem de raiz. Ser radical significa desafiar a raiz de algo que se vai contra, não apenas “podar o conceito” e deixar que ele floresça novamente, mas atacar o ponto chave de onde se origina o conceito. É nesses pontos chaves que está a raiz, mas muitas vezes é nessa mesma base onde fica a ferida, o calcanhar-de-Aquiles. E os defensores dos animais não-humanos estão a apontar a ferida na filosofia moral tradicional.
Muitos de nós utilizamos o termo radical com um sentido pejorativo. Porém, essa mesma maioria de nós é radicalmente contra muitas coisas, por exemplo, radicalmente contra o estupro. Por aí, é possível perceber que nem sempre pode se constituir um erro em ser radical. Outra questão quanto ao termo radical, é que ele geralmente é associado à violência. Mas o termo em si não traz consigo uma matriz de violência. Gandhi foi totalmente contra a violência. Radicalmente contra a violência. Era um radical nesse sentido.
Olhando de fora, talvez a maioria das pessoas olhe para os movimentos de defesa dos animais e não consiga fazer a conexão com a luta pelo princípio da igualdade, o mesmo princípio que condena a discriminação por raça ou sexo. Geralmente, as pessoas que defendem os animais não-humanos, são vistas como “amantes dos animais”, o que não necessariamente é verdade, e quando é, é um aspecto irrelevante para a questão levantada acima, que coloca então a questão dos animais não-humanos como uma questão que deve ser tratada à luz de critérios éticos. Ou seja, a primeira coisa que precisa ficar clara é que os defensores dos animais não são sentimentalóides emotivos desesperados e que a luta em defesa dos não-humanos está embasada em argumentos racionais, que podem ser justificados eticamente. Trata-se de uma importante questão política, da mesma ordem de questões como a luta pelo fim do racismo e o sexismo.
Algumas pessoas podem achar estranho que se proponha que a luta em defesa dos animais é a mesma luta pelo fim de preconceitos como o racismo ou sexismo. A matriz de pensamento é mesma: uma discriminação com base em aparências externas ou em características factuais (se o ser em questão não têm uma aparência semelhante à daquele que discrimina, este não é aceito do ponto de vista moral, e seus interesses não contam). Se dermos mais peso aos interesses de membros de nossa própria espécie quando estes concorrem com interesses de membros de outras espécies, quando o interesse em questão é exatamente o mesmo (ou seja, estamos nos baseando em aparências externas para traçar o critério de relevância moral), estaremos utilizando o mesmo critério de um racista ou sexista, que diz que o interesse de um ser não conta por ele não pertencer à raça ou ao gênero “certo”, como se fosse culpa do ser em questão ter nascido com essa ou aquela aparência.
O preconceito de espécie, é então chamado “especismo”, termo criado pelo filósofo e psicólogo Richard Ryder em 1973, para se referir a preferência que os humanos dão por interesses de membros de nossa própria espécie,e para fazer uma analogia com racismo e sexismo. Os especistas violam então o princípio da igualdade (que não é uma igualdade factual, como será explicado a seguir) ao darem mais peso a interesses da espécie homo sapiens, ainda que o interesse em questão, apresentado pelo indivíduo membro de outra espécie seja exatamente o mesmo. A questão do especismo é mais agravante ainda quando damos mais peso a interesses menores (mais fúteis e triviais, completamente desnecessários à manutenção da vida e bem-estar enquanto indivíduo da espécie homo sapiens) de membros de nossa espécie quando concorrem com interesses maiores (mais básicos e vitais para manutenção da forma de vida específica em questão) de membros de outras espécies.
Infelizmente, a questão atual ainda está no momento citado acima: damos mais peso a nossos interesses mais fúteis e triviais (comer um alimento específico como carne, leite e ovos) quando concorrem com interesses básicos como não sofrer dor, não perder a liberdade de movimento e continuar a viver bem a sua maneira específica, de indivíduos de outras espécies. Ou seja, a maioria dos humanos tem utilizado o mesmo critério dos racistas e sexistas ao lidar com questões que afetam interesses de animais não-humanos, esquivando-se de aceitar o desafio de um raciocínio ético e preferindo continuar preso à uma cultura cultivada no preconceito.
Alguns podem argumentar que não estão discriminando o animal não-humano com base na aparência, mas sustentam que os interesses dos humanos devem ter mais peso porque seres humanos têm a plena posse da razão. Traçar o limite do círculo dos dignos de considerabilidade moral na característica factual da plena posse da razão (característica essa que os indivíduos deveriam apresentar para serem dignos de respeito) foi o que fez a filosofia moral tradicional, desde a antiguidade. Será esse critério justo?
Vejamos, o critério da plena posse da razão exclui milhões de seres, já mesmo na espécie humana. Bebês, crianças muito pequenas, comatosos, idosos senis, portadores de graves doenças cerebrais – nenhum deles possui a plena posse da razão. Note que, em última análise, este critério exclui a todos nós, porque podemos, a qualquer momento, perder a plena posse da razão, por motivo de acidente ou doença degenerativa. No entanto, não excluimos estes seres da comunidade moral, muito pelo contrário, damos maior atenção ainda aos seus interesses, pois estão numa situação de maior dependência dos nossos cuidados.
Se não excluímos membros de nossa espécie, ainda que eles não apresentem o critério que propomos para excluir animais não-humanos, e excluímos animais não-humanos, ainda que muitos deles apresentem um nível de raciocínio muito maior do que os humanos citados acima, é sinal de que este é um critério especista, criado para favorecer apenas a um pequeno grupo, com o intuito de tirar vantagens das suas interações com seres que não têm como se defender dos ataques. A filosofia moral tradicional confundiu o critério para ser agente moral (e pois, responder pelas conseqüências dos seus atos) – a plena posse da razão – e aplicou este critério para indicar quais seriam os pacientes morais (que não precisam, óbviamente, da plena posse da razão para sofrer as conseqüências dos atos dos agentes morais). Quando estamos defendendo um bebê, um idoso senil ou um animal não-humano, não estamos defendendo a plena posse da razão deste indivíduo, mas sim, sua vulnerabilidade ao dano que é possível que outros lhe causem. Então, o critério da plena posse da razão não se sustenta.
Alguns argumentam ainda que, bebês tem a “potencialidade” para desenvolver a plena posse da razão, e comatosos ou idosos senis “já tiveram” a plena posse da razão. Porém, esse critério falha ao explicar o porquê não deveríamos maltratar uma pessoa que nascesse com uma doença cerebral que o impedisse definitivamente de desenvolver a plena posse da razão durante toda a sua vida, mas que tivesse capacidade de desfrutar desta mesma vida prazeirosamente, ainda que sem a plena posse da razão. Definitivamente, ter ou não a posse da razão não é o motivo pelo qual não maltratamos os seres de nossa própria espécie.
Os filósofos utilitaristas, defensores dos animais não-humanos, como Humphry Primatt, Jeremy Bentham e Peter Singer propõem então o critério “dor/sofrimento” para que o ser em questão seja aceito na comunidade moral. Com esse critério, não devemos então perguntar se o ser em questão tem ou não a plena posse da razão, para considerar seus interesses, mas sim, se ele tem a capacidade de sofrer.
Este é o critério da senciência. Para Peter Singer, os que têm interesses a serem considerados são os seres sencientes, ou seja, aqueles seres que não são apenas sensíveis (termômetros são sensíveis à variação de temperatura, por exemplo), mas além disso, conseguem diferenciar de um estado prazeroso de um estado de sofrimento, ou seja, possuem consciência do seu sofrimento (coisa que um termômetro não consegue, óbviamente), por possuírem um sistema nervoso central organizado. Daí o nome senciência (sensibilidade + consciência), o que envidencia a presença de, além da sensibilidade, estados mentais nesses seres.
Singer propõe então o princípio da igual consideração de interesses semelhantes, que diz: “um interesse é um interesse, seja lá de quem for o interesse”. Ou seja, com isso o autor está dizendo que são os interesses que devem contar (os mais básicos e vitais devem ser privilegiados em detrimento dos mais fúteis e banais) e ainda, quando o interesse é semelhante, o critério de escolha não deve se basear em aparências externas ou características factuais (como a plena posse da razão ou qualquer outro critério tão arbitrário quanto).
Com este princípio, já podemos questionar todas as formas como são criados os animais não-humanos nas modernas granjas de produção industrial. Animais confinados em condições deploráveis, com dor intensa ao longo de toda a vida, para a produção de carne bovina, avina ou suína, leite, ovos, vitela, foie gras, indústria de peles, etc. Não pensem que isso exclui a pesca, pois peixes são mortos, ou por asfixia ou descompressão, e isto traz enorme sofrimento.
Então, como vivemos há milênios nessa cultura especista, a maioria de nós vê os animais não-humanos não como indivíduos, mas como ferramentas ou recursos. Os vemos não com um valor em si mesmos, mas como portadores de valor apenas instrumental (ou seja, têm valor somente enquanto um meio para os humanos atingirem um fim). Assim, animais não-humanos são colocados na mesma categoria que tijolos e canetas, pois só possuem valor enquanto funcionam como um meio para os humanos chegarem a um fim.
Aqui é preciso fazer uma distinção de relevância moral. Animais não-humanos e tijolos são muito diferentes. Alguns podem argumentar: mas negros e brancos são muito diferentes entre si, ainda que devam ser considerados igualmente. Animais humanos e animais não-humanos também. Porém, existe uma outra diferença maior, que sustenta que devemos colocar num mesmo grupo animais não-humanos, humanos negros e humanos brancos, e em outro grupo, tijolos e canetas. Aí se apresenta o critério do sofrimento. Esta é uma diferença moralmente relevante (pois para sofrer é precismo ter a capacidade para o sofrimento – coisa que um tijolo não possui, podemos bater com o tijolo na parede que ele nada sentirá), e não apenas uma diferença factual (como a cor da pele e o número de patas, por exemplo, que não interfere na capacidade de sentir dor).
Porém, a questão não é apenas de sentir. Muitas plantas podem responder a estímulos externos, e muitos aparelhos eletrônicos também. A capacidade de sentir consciente, chamada senciência, se encontra apenas em animais que possuem um sistema nervoso central organizado. Nestes, há a capacidade de sentir, no mínimo, dor e prazer. Neste grupo, estão os mamíferos, peixes e répteis, por exemplo.
O ser humano se auto-intitula racional, mas na sua interação com animais não-humanos, privilegia exatamente critérios arbitrários, de preferência sentimental por membros de sua própria espécie (simplesmente porque têm um formato externo semelhante ao seu), que nada possuem de racional. Estes critérios baseados em aparências externas, levam a conclusões absurdas e irracionais, como achar que ter pêlos sobre o corpo, ou quatro patas, ou chifres, influencia na relevância de considerarmos o sofrimento de tal ser. A maioria de nós já conseguiu compreender o raciocínio lógico de que a cor da pele não influencia em nada disso, mas têm muita dificuldade em aceitar que a espécie em que o indivíduo nasce (se há na espécie a capacidade para a senciência) também não influenciam.
Muitos humanos compreendem o argumento, mas escolhem na prática, a guiarem-se por critérios egoístas. Estes critérios têm ainda menos de racionalidade. O egoísta exige que os outros respeitem sua dor, mas não se preocupa se está a infligir dor no outro, e muitas vezes, inflige com orgulho. Essa atitude mostra um limite de raciocínio, onde o egoísta não consegue compreender a simples analogia de que, para cada indivíduo, ele também é um “outro”, e se todos seguirem o mesmo princípio que ele, ele não poderá defender o seu ponto de vista em bases racionais, quando estiver em posição de sofrer as conseqüências das ações dos outros. O egoísta não consegue compreender que, ao abrir exceção para ele mesmo em poder causar dor ao outro, está abrindo automaticamente exceção para todos os outros causarem dor nele. Não há nenhuma justificativa racional que diga que uma pessoa deva ser parâmetro para ter seus interesses mais considerados do que de outros. Como o egoísta irá justificar que os interesses dele devam contar mais? Por que os dele e não o de outro? E o de outro? E o de outro?
Vimos com isso que, se queremos guiar nossas interações por princípios aos quais possamos justificar, devemos considerar que toda dor é eticamente injustificável. Se não admitimos que nos causem dor, precisamos considerar este princípio. Quanto a este argumento, muitas vezes aparece a pergunta “e os masoquistas?”. A diferença é que o masoquista escolhe e prefere sofrer tal dor, e na verdade, tal dor é prazerosa para ele.
A única dor que se possa justificar (a qual admitiríamos sofrer também) é uma dor causada para aliviar uma dor maior em nós mesmos. Lembrando sempre que esta dor, como dito na frase anterior, só se justifica para aliviar uma dor maior no ser que a sente, diferentemente do que alguns argumentam, de causar dor em um para aliviar a dor do outro. Esta dor, nós mesmos não admitiríamos sentir, então, seguindo o princípio racional da coerência, não podemos concluir que podemos infligir esta dor no outro, em hipótese alguma.
Tudo está resolvido com o critério da senciência? Porém, como aponta o filósofo Tom Regan, nossas interações podem causar um dano enorme ainda que não se cause dor alguma. Tomemos o seguinte exemplo: você está dormindo, e enquanto dorme, eu pulo a janela do seu quarto, aplico-lhe uma anestesia para que você nada sinta, e logo após isso, aplico-lhe uma dose letal para que morra instantaneamente. Não há nada de errado com isso?
Não admitiríamos que nossas vidas fossem tiradas por outros, mesmo que estivéssemos anestesiados. Teríamos muito a perder. É por coerência a esse princípio, que os defensores dos animais também consideram eticamente injustificável consumir do cadáver de seres não-humanos que foram mortos sem dor alguma. Um dano foi causado ainda que não apareça dor alguma, e, como no caso da dor, a espécie biológica na qual o indivíduo nasce não influencia na capacidade de desfrutar da vida e querer continuar vivê-la e sofrer um dano por ter esta ceifada.
Vivemos numa cultura tão especista, que muitas pessoas consideram “menos pior” consumir o cadáver de um animal que foi morto sem dor. Quão menos pior será? Alguns argumentam que o animal viveu solto e “feliz” até o dia do abate. Será que consideraríamos realmente um mal menor, caso o indivíduo que fosse morto fosse da nossa espécie? Criar crianças humanas, desde bebês, até a idade adulta, vivendo uma vida “solta” e “feliz”, para que depois sejam abatidas sem dor, será um “mal pequeno”? Admitiríamos sermos criados para isso? Se consideramos um mal enorme sermos criados para tal finalidade, e consideramos um “mal menor” fazermos o mesmo com indivíduos de outras espécies, estaremos sendo realmente culpados da acusação de especismo, que, como dito acima, é um critério irracional.
A esta altura, surge a inevitável pergunta: plantas também são mortas sem sentir dor alguma. Por que seria pior matar um animal sem dor, do que matar uma planta? Estas também não foram privadas de suas vidas?
Vale lembrar aqui que o termo “vida” é um conceito bastante amplo. Nossos membros e órgãos internos também estão vivos. Se precisássemos por exemplo amputar uma perna ou retirar um rim para salvar o “todo”, estaríamos tirando a vida dos nossos membros e órgãos internos. Cadeias viróticas também estão vivas. Frutos e sementes também.
Porém, não é a “vida” em si, que estamos a defender. Não é hipocrisia defender a abolição total do uso de animais não-humanos e comer plantas. Há base de relevância moral para agrupar animais humanos e não-humanos num mesmo grupo, e plantas em outro. Animais não-humanos, assim como os humanos, não apenas estão vivos, no sentido biológico. Eles têm uma mente, e tendo uma mente, possuem uma vida no sentido biográfico. Possuindo uma mente, possuem autoconsciência, pois de outra forma não conseguiriam sobreviver no ambiente, caso não conseguissem distinguir entre o ambiente e si mesmos, entre si mesmos e outros animais, entre si mesmos e os nutrientes que precisam. Possuem também uma memória, no sentido que guardam informação do que lhes é benéfico para seu organismo e o que não é, e não repetem interações danosas, na verdade esquivam-se delas e buscam interações prazerosas. Possuindo autoconsciência e memória, possuem uma mente, e podem sofrer danos psicológicos (mesmo que não haja evidência de dor alguma), além dos danos biológicos (sentir dor ou perder a vida). São então indivíduos no sentido que possuem uma vida (no sentido biográfico) que é melhor ou pior para eles, independente do que os outros possam pensar desta vida ou valorizar esta vida.
Este argumento, óbviamente deve ser utilizado para defesa dos animais e não para justificar causar danos às plantas, muito menos para dizer: “já que plantas podem sofrer dano, então justifica causar dano aos animais também”. Tal conclusão, como vista no parágrafo acima, é absurda. Me limito neste artigo, a tratar da questão dos animais. Porém, o conceito de “dano” sugerido por Tom Regan possui base para a defesa de uma ética ambiental (na qual estariam incluídos além dos animais, plantas e ecossistemas) genuína, ou seja, onde o valor existe na própria natureza, independente do valor instrumental que os humanos possam dar a ela. Se formos nos basear na nossa ignorância, podemos levar centenas e anos até descobrir como é “ser planta”, como é “ser árvore”, para daí então, começar a ver o meio ambiente como digno de respeito. Talvez até lá não reste nenhum meio ambiente para ser digno de respeito, pois já teremos destruído tudo.
Voltando à questão da “vida biográfica” dos animais, é possível dizer que animais preferem viver em certas condições e não em outras, e sofrem um dano caso sua preferência não seja respeitada. Então, nossas interações podem ser danosas, ainda que não se cause dor ou se tire a vida deles, e ainda que nem nós, nem eles se dêem conta disso. O valor da vida de cada ser que é um centro psicológico da sua própria vida, depende somente do valor que tal sujeito dá a sua vida. Eles possuem então, segundo o filósofo Tom Regan, valor inerente (inerente àquela vida, inerente àquele ser), não podendo ser mensurado por nós humanos, mas somente por aquele que vive tal vida. A vida de um porco importa tanto para ele quanto a minha para mim ou a sua para você. Por esta razão, a vida com valor inerente tem valor categórico (todos têm valor máximo) e todos os que a possuem têm igual estatura moral.
Então, não somente abates sem dor violam este princípio, mas também circos, exibição de mamíferos aquáticos e criações comerciais de animais de estimação, por exemplo. É bem verdade que na grande maioria dos casos, por exemplo, em circos, envolve intensa dor e sofrimento, o modo como são tratados os animais. Mas ainda que não haja sofrimento (como se não houvesse), há algo alí que viola o princípio da igualdade. Os animais que ali estão, naquelas jaulas, foram privados do que sua natureza biológica necessita de mais básico. Sensações psicológicas como medo, estresse, pânico e ansiedade são provocados pela privação da liberdade natural, realidade comum a todos os animais não-humanos nessas condições. Animais estes, privados de sua natural liberdade, são forçados a alimentar-se e “movimentar-se” inadequadamente, por viverem confinados a espaços extremamente limitados. Algo muito diferente do que seria a vida em seu habitat natural. Elefantes, por exemplo, na África, estão acostumados a viver em um território de 800 Km de extensão , em seu habitat natural, e vivem sempre em manadas, onde os filhos aprendem com os pais a proverem o seu sustento. Basta nos imaginarmos nesta mesma situação para entendermos porque isto é uma violência ainda que aparentemente não cause dor.
A mesma coisa acontece com a criação comercial de animais domesticados. Muitas vezes, o dano não é percebido no exato momento, por aquele que está a sofrer. Cães e gatos são tratados como se tivessem não valor inerente, mas sim um valor instrumental (são considerados mercadorias pelos humanos e só têm valor enquanto satisfazem interesses econômicos ou estéticos dos humanos), além de serem privados de todas as suas interações naturais, com membros da mesma espécie. São privados de conviver em bando e a mãe é privada de ensinar os seus filhotes. O espaço é pequeno e impróprio para suas patas. Os filhotes irão depois ser vendidos como mercadorias e muitas vezes trancados em apartamentos ou em quintais com correntes, impedindo de procurar os nutrientes (não só biológicos, mas psicológicos também) que realizariam sua existência enquanto indivíduo de tal espécie. Psicologicamente, isto funciona como uma violência que na maioria das vezes, leva estes indivíduos a terem pertubações, stress, pânico e tédio.
Basta imaginar como nos sentiríamos estando no lugar deles. Basta imaginar viver 24 horas por dia numa vitrine, ou numa corrente, ou num cercado com 2 metros quadrados (quando muito), sendo vendido e separado não só da sua mãe, mas de todos os indivíduos da sua mesma espécie. Basta imaginar que um alienígena fizesse isso conosco para tirar a fácil conclusão racional que esta prática é tão eticamente injustificável quanto infligir dor a outro sem ser para aliviar uma dor maior. Causaria uma mobilização mundial, caso isso fosse feito com bebês humanos. Imagine: “Vendem-se bebês humanos. Temos dóceis, bravos, loiros, negros, morenos, com pouco ou muito cabelo. Vendem-se acessórios, como correntes e talco”.
Se não admitimos em nós, não há nada que justifique causar a mesma coisa no outro, nem mesmo argumentos econômicos. E isso independe de todos passarem a respeitar o princípio ou não. Independe se vamos mudar o mundo ou não. Consideramos algo injustificável. Não há um bom motivo para fazermos tal coisa. Então, não o devemos fazer. Se gostamos de utilizar do nosso raciocínio, então agimos de acordo com o que racionalmente, podemos defender e justificar.
Certa vez, um criminoso foi preso por estuprar uma criança. Quando ele foi preso, alegou que “Mas, mesmo eu parando de estuprar, outras pessoas vão continuar. Outro criminoso iria estuprar a mesma criança”. Será que é válida a afirmação do criminoso como justificativa? Se não admitimos uma justificativa dessas no caso de um estupro de uma criança humana, por que admitimos no caso da morte e exploração de seres não-humanos?
Conseguiremos finalmente deixar de lado o preconceito irracional conhecido como especismo e começaremos a usar, finalmente, um pouco do nosso raciocínio, que (dizemos) que temos?
Os animais existem para seus próprios propósitos. Não foram feitos para os humanos, definitivamente.
AUTOR: Luciano Carlos da Cunha
Referência Bibliográficas:
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REGAN, Tom – Jaulas Vazias: encarando o desafio dos direitos animais; tradução Regina Rheda ; revisão técnica Sônia Felipe, Rita Paixão – Porto Alegre, Rs: Lugano, 2006.
SINGER, Peter. Ética Prática. 3ª ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 2002
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Fonte:
Posted: 27/06/2011 in *** Todos ***, Direitos Animais
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GatoVerde, em defesa dos Direitos Animais
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