CRÍTICA À DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE BEM-ESTAR DOS ANIMAIS
Bruno Müller – Março de 2008
Desde 2005 a World Society for the Protection of Animals (WSPA, Sociedade Mundial de Proteção Animal) promove uma campanha chamada “Para mim os Animais Importam” (do original em inglês “Animals Matter”), que conclama pessoas a um abaixo-assinado para pressionar governos a assinar uma Declaração Universal de Bem-Estar dos Animais – ainda em fase de rascunho, podendo ser alterada sem aviso prévio aos signatários.
A campanha tem circulado na internet e conquistado significativa adesão do público vegetariano. Quero crer que esta adesão se deva à ingenuidade, mais que à concordância. Muitos vêem a frase “Para mim os Animais Importam” que acompanha a divulgação do documento, e podem se deixar enganar. Outros não estão ainda familiarizados com os debates sobre as questões animais – os mais escolados sabem que “Bem-Estar”, um termo que parece encerrar coisas boas, na verdade carrega implícita a idéia de que não é a liberdade que conta, mas apenas o conforto. Animais em jaulas confortáveis esperando a inevitável violação de sua integridade física e/ou psíquica, uma vez já violado seu direito básico à liberdade.
Outro engano possível é supor que o bem-estarismo, a redução do sofrimento, é uma fase necessária no processo de libertação animal. Na verdade, enquanto lutarmos pelo bem-estar, por definição, não estaremos lutando pela libertação. Não se pode chancelar e condenar a exploração ao mesmo tempo. E o bem-estarismo nitidamente chancela a exploração, constatação que aflora límpida da análise desse documento. Um outro engano muito frequente, que deriva do anterior, é imaginar que a suavização da mensagem em defesa dos animais – bem-estar ao invés de abolição – é uma estratégia necessária para sensibilizar onívoros e demais pessoas que apoiam a exploração animal. Não obstante, é entre vegetarianos que tal campanha mais circula – justamente o público que estaria mais aberto a um debate sobre o abolicionismo. Nesse sentido, portanto, uma campanha destas proporções, de ambições mundiais, representa um enorme atraso no debate entre as pessoas que têm alguma preocupação ética referente à exploração animal.
Quero, então, fornecer elementos à crítica e, portanto, repúdio completo à Declaração Universal de Bem-Estar dos Animais, promovida pela WSPA, uma entidade assumidamente bem-estarista, de raízes anglo-americanas, surgida em 1981.
A Declaração não se dispõe a condenar qualquer das formas de exploração animal que lista – sem dúvida as mais disseminadas em todo o mundo – inclusive aquela que é, possivelmente, a mais bárbara de todas: a vivissecção. Ela tão somente pede que a exploração seja feita observando critérios de bem-estar (nem mesmo limites: apenas critérios de bem-estar), termo que aparece ao todo 11 vezes, em um documento de 3 páginas. Segue uma análise do documento onde procuro demonstrar o indiscutível respaldo que ela dá à exploração animal.
Preâmbulo
Os três primeiros parágrafos afirmam que o bem-estar dos animais é uma questão que concerne aos governos e à sociedade, e que é “um processo contínuo”. Daí seguem 10 ideias básicas que orientam a Declaração. Em nenhuma delas se afirma que os animais são titulares de direitos, mas tão somente “merecedores (…) da consideração e do respeito devido”. Ainda que não queiramos transformar este num debate de palavras, em vez de ideias, é sintomático a ausência do termo “direitos”, em contraste com o abuso do termo “bem-estar”. A declaração não reconhece o direito à vida, à integridade física e à integridade psíquica dos animais não-humanos. E as liberdades são reconhecidas de forma muito limitada, como se verá a seguir. Os seguintes trechos merecem destaque especial:
RECONHECER que os humanos [habitam] este planeta juntamente com outras espécies e formas de vida e que todas as formas de vida coexistem dentro de um ecossistema interdependente.
Aqui quero ressaltar a ideia de “interdependência”. O conceito deve ser qualificado. Todas as espécies são interdependentes na medida em que contribuem para o equilíbrio ecológico. Não obstante, desta interdependência jamais se deve deduzir o direito de criar, confinar, manipular geneticamente, mutilar, torturar e matar animais sob o argumento de que “dependemos” disso. A exploração animal não é necessária para o ser humano em nenhuma instância, em nenhuma atividade e em nenhum grau. Podemos viver, nos alimentar, nos vestir, cuidar de nossa saúde e higiene sem fazer uso de animais. Usá-los para isso não é interdependência – até porque os animais em nada se beneficiam dessas atividades, mas exercício de poder. Cabe destacar que em matéria jurídica qualquer texto está sujeito à interpretação. Daí a importância dessa observação – este parágrafo pode ser utilizado para, sob a alegação de “interdependência”, justificar qualquer barbaridade que se pretenda levar adiante contra animais não-humanos.
RECONHECER que a utilização de animais por parte dos humanos pode reverter em benefícios importantes
Aqui a situação fica ainda mais grave: o texto afirma literalmente que o uso de animais pode ser benéfico, justificando-o e dando caráter normativo a este reconhecimento: como seria a luta abolicionista em países signatários desta Declaração que se pretende levar à Organização das Nações Unidas? O que ela pretende é regulamentar – e, portanto, dar respaldo legal – à exploração animal em todo o mundo. Não se pode descartar a possibilidade dela ser usada, de modo interpretativo, para justificar usos de animais que não estejam nela citados – como, por exemplo, a caça “esportiva”. Além disso, o maior absurdo presente neste parágrafo se deve ao fato de que ninguém pode afirmar que a escravidão é justa quando rende benefícios ao escravista. O que importa é que a escravidão rende inequívocos malefícios ao escravo.
RECONHECER que (…) os vegetarianos desempenham um papel importante na conservação quer da saúde, quer do bem-estar animal
Este trecho disfarça, sob o manto da suposta exaltação, uma minimização da importância do vegetarianismo. O veganismo – que é o vegetarianismo estrito (sem nenhum alimento de origem animal) somado ao boicote de outros produtos resultantes da exploração animal – é a base inegociável de uma atitude de coerência e respeito em relação aos animais. Enquanto houver seres humanos que se alimentem dos animais e suas secreções, não é possível preservar a saúde e o bem-estar dos animais, menos ainda a sua liberdade. Assim, o vegetarianismo e mesmo o veganismo são meros paliativos enquanto ainda houver exploradores. E mesmo o veganismo só terá efeito sobre a vida dos animais quando for adotado por toda a humanidade, ou por uma maioria capaz de levar adiante a abolição da exploração animal.
RETER que as “cinco liberdades (livre de fome, de sede e de má nutrição; livre de medo e de perigo; livre de desconforto físico e térmico; livre de dor, ferimento e doença; e liberdade para expressar padrões normais de comportamento)” e as “três medidas (redução do número de animais, aperfeiçoamento dos métodos experimentais e substituição dos animais nas técnicas utilizadas)” facultam uma orientação valiosa para a utilização de animais
Ora, todas essas liberdades são diretamente atacadas, de modo evidente, pela pecuária, pelo abate de animais para alimentação e pela vivissecção – além das outras formas de escravidão. É muito fácil demonstrar que mesmo que as cinco liberdades sejam respeitadas ao longo da vida do animal – o que é altamente improvável -, elas serão imediatamente e irrevogavelmente violadas no momento do abate ou da vivissecção. Logo, a Declaração é incoerente, se não hipócrita. As três medidas, ou 3 Rs (dos termos no inglês, “reduction”, “refinement”, “replacement”), por sua vez, existem já há quase 50 anos – foram formuladas em 1959, na Grã-Bretanha. De lá para cá o número de animais empregados em laboratório apenas aumenta, o que mostra a total falência do paradigma bem-estarista e sua incapacidade de atingir os próprios objetivos reformistas. Mais que isso, demonstra que o reformismo apenas existe para aprimorar a exploração animal. Por fim, o trecho “orientação valiosa para a utilização de animais” não deixa dúvidas. A Declaração afirma que com regulamentação e observando-se certas premissas, a exploração animal é aceitável, e esse pensamento nunca levará ao fim da exploração e, longe de proteger os animais, chancela, em última instância, os maus-tratos e a crueldade que são intrínsecos a atividades como a pecuária e a vivissecção.
É, portanto, uma Declaração que sofre de má-formação congênita pois torna os animais vulneráveis no mesmo momento em que os pretende proteger.
Princípios
São ao todo quatro princípios.
Os dois primeiros princípios recomendam que os Estados reconheçam o bem-estar dos animais como matéria relevante que seja promovido através de normas jurídicas de âmbito nacional e internacional. Ou seja: leis que perpetuem a condição dos animais não-humanos como propriedade dos seres humanos.
3. “Os [estados] devem empreender todas as medidas adequadas para evitar a crueldade para com os animais e para reduzir o seu sofrimento.”
Se o sofrimento requer redução, está implícito o reconhecimento de que ele será, em algum momento, promovido. Em contraste com esta Declaração bem-estarista, uma Declaração abolicionista assumiria o compromisso não de reduzir, mas de abster-se de promover qualquer tipo de sofrimento deliberado e desnecessário ao animal não-humano, só sendo legítimo causar algum dano quando para protegê-lo de um sofrimento maior, e não para atender a interesses alheios.
4. “As normas adequadas para o bem-estar dos animais devem continuar a ser desenvolvidas e elaboradas, tais como, mas não só, as que dizem respeito à utilização e gestão de animais de quinta, animais de companhia, animais utilizados em pesquisas científicas, animais de carga, animais selvagens e animais para fins recreativos.”
Aqui fica claro que não há qualquer condenação de nenhum tipo, nenhuma crítica fundamental, de base, à exploração animal como um todo ou a alguma modalidade de exploração animal em particular. Não há qualquer menção a um horizonte de liberdade para os animais – a sua escravidão poder-se-á perpetuar eternamente, no que concerne a esta Declaração.
Propostas de Iniciativas
A parte final versa sobre iniciativas recomendadas pela declaração para este suposto bem-estar animal. Basicamente, a exortação, tão comum em nossos dias, à cooperação entre Estado, sociedade civil, outros Estados, organizações não-governamentais e organismos internacionais; a criação de leis e regulamentações, acompanhadas de educação; apoio governamental para a “pesquisa e desenvolvimento do bem-estar dos animais”. Mais uma vez, afirma-se que a propriedade da vida não deve ser abolida, mas tão somente regulamentada por lei. E embora no preâmbulo a declaração sugira o reconhecimento da importância do vegetarianismo, promovê-lo não é tido como uma iniciativa recomendável.
Conclusão
Em conclusão, pode-se dizer que esta Declaração não atende a nenhum interesse fundamental dos animais não-humanos, mas tão somente ao interesse egoísta do ser humano em continuar explorando-os, promovendo um suposto bem-estar, para apaziguar suas consciências, torná-la mais aceitável frente a toda a sociedade, e não colocar jamais em risco os benefícios – em geral econômicos e políticos – advindos da mesma.
Além disso, esta Declaração do Bem-Estar Animal representa um retrocesso mesmo na comparação com outra declaração bem-estarista, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, assinada em Bruxelas, 27 de janeiro 1978. Obviamente, não a defendo. Mesmo de forma fraudulenta, ela afirma que animais são titulares de direitos, o que possibilita que nós, abolicionistas, tragamos a discussão para este âmbito, clamando por avanços que garanta aos animais os direitos que realmente lhes importam – serem livres, não serem tratados como propriedade. Além disso, em algumas instâncias, como a dos testes em laboratórios, ela consegue ser mais crítica, defendendo a substituição dos animais não-humanos. Hoje, 30 anos depois, deveríamos lutar para dar um passo adiante na questão animal, não um passo atrás.
E já dispomos de um instrumento para dar esse passo adiante junto aos governos e organismos internacionais: promover a Declaração Universal dos Direitos Animais, que entidades abolicionistas têm se empenhado em promover (não confundir esta Declaração dos DIREITOS ANIMAIS – sem “dos” – com a Declaração de 1978 criticada acima).
Vegetarianos: em vez de assinar essa declaração de falsa defesa dos animais, imprimam, assinem e divulguem a [NOVA] Declaração Universal dos Direitos Animais: http://gato-negro.org/blog/declaracao-universal-dos-direitos-animais/.
Em vez de apoiarmos a farsa da WSPA, devemos concentrar nossos esforços em ensejar um debate amplo na promoção não do bem-estar, mas da LIBERTAÇÃO ANIMAL.
NOTA
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais de 1978 pode ser lida na íntegra aqui: www.propg.ufscar.br/pdf/etica_animais/direitos_universais.pdf
Nota do editor: por solicitação do autor, o antepenúltimo e penúltimo parágrafos foram alterados posteriormente à publicação original na revista.
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Bruno Müller
Bacharel em História pelo Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense, doutorando em História das Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tradutor ocasional de textos acadêmicos (inglês-português). Editor de blogs da Agência Nacional de Direitos Animais. Vegetariano há mais de 20 anos, vegano e ativista independente desde 2007, na cidade do Rio de Janeiro, onde ministra palestras e faz ações de conscientização em prol dos direitos animais.
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Pensata Animal nº 9 – Março de 2008 – www.pensataanimal.net
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Fonte: http://www.pensataanimal.net/pensadores/42-brunomuller/183-critica-a-declaracao
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Outros artigos do autor estão em http://www.pensataanimal.net/pensadores/42-brunomuller
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GatoVerde em defesa dos Direitos Animais
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